A caminho de Ouirgane
Depois de uma hora e meia de espera chegou à mesa a nossa tajine - o guisado típico marroquino, neste caso de galinha e vegetais, cozinhado num recipiente de barro de formato cónico. Estávamos na recôndita vila de Ouirgane, às portas das montanhas do Atlas, num pequeno estabelecimento gerido pelo Berbere Fahid. Pelo entusiasmo com a nossa chegada e pela forma como nos apresentou com orgulho à sua família e nos mostrou os seus aposentos percebemos que provavelmente são muito poucos os turistas que por aqui passam. Mostrou-nos também o quarto para turistas que construiu por trás do seu "restaurante" - se é que se pode chamar "restaurante" a um aglomerado de mesas sem menu. Enquanto as crianças brincavam, "Mama" descascava legumes num buraco escuro com um forno a lenha a que chamam de cozinha. A sua respiração parecia vir das entranhas de um rochedo - por momentos pensámos estar a ouvir o próprio Dart Vader.
A "Mama" berbere
Ficámos sem perceber porque é que Mama escolheu aquele local para descascar os legumes porque na hora de colocar a tajine ao lume escolheu o fogão normalíssimo da cozinha "moderna" adjacente.
"Mama" a descascar legumes na cozinha berbere
A cozinha "moderna" do "restaurante" de Fahid
Experimentámos assim a hospitalidade do povo berbere. Depois da tajine mais autêntica e saborosa que poderíamos ter provado Fahid levou-nos a passear pela sua vila. Não se passava absolutamente nada. Era Sábado e ao Sábado os homens descansam enquanto as mulheres trabalham. Vimos apenas quatro ou cinco crianças que fugiram das nossas máquinas fotográficas e uma senhora tão corcunda que o seu queixo quase se arrastava pelo chão.
A vila de Ouirgane completamente deserta
A senhora corcunda a trabalhar ao Sábado
A tajine que comprámos a um amigo do Fahid
Fizemos os 60 kms de regresso no calmamente ao fim da tarde para enfrentar o trânsito nocturno da cidade de Marraquexe. E o trânsito é absolutamente louco. Não há regras, prioridades ou cedências de passagem, há carros que aparecem de todas as direcções, motas e pessoas a pé, que são atraídos pelo nosso carro como se tivéssemos um íman. O mapa também parece não fazer sentido - quando achamos que estamos numa rua, estamos na outra ponta da cidade. Depois de muitas voltas acabámos perdidos no meio dos souks, a zona de mercado da cidade, em que as ruas íam ficando cada vez mais estreitas. Ainda não conseguimos perceber que magia aconteceu para o nosso carro ter encolhido ao dobrar um esquina de dimensões estupidamente apertadas.
Assim foi o terceiro dia da nossa curta estadia em Marraquexe. Somente com quatro dias de "férias" decidimos que este seria o melhor destino para desligarmos da nossa vida lisboeta: depois de apenas uma hora e meia de voo mergulhamos num mundo à parte, e com a temperatura amena.
Assim que chegámos instalámo-nos no Dar Charkia, um riad convertido em hotel. Na zona da Medina, onde ficámos, há vários riads - casas ou palácios tipicamente marroquinos com um jardim ou pátio interior. Como tínhamos apenas quatro dias optámos por investir em algum conforto, apesar dos problemas logo na primeira noite... Quando tudo o que mais queríamos era relaxar, o ar condicionado teimava em não funcionar e a água do chuveiro estava mais fria que o mármore do chão. Portanto lá tivemos nós que agarrar na nossa trouxa e mudar de quarto por dois dias, para depois regressar ao mesmo na última noite quando o problema estivesse resolvido. Enfim... Nada como reviver um pouco a nossa verdadeira forma de viajar - de mochila às costas de dois em dois dias.
No dia em chegámos andámos pelos souks durante horas relembrando as cores e os cheiros que já conhecíamos. Já tínhamos estado em Marraquexe, mas não juntos, e de qualquer maneira há sempre um novo cantinho a descobrir e uma nova rua para nos perdermos. Quando caiu a noite juntámo-nos ao frenesim da praça Djemaa El Fna, em que dezenas de tendas são montadas para servir comida e os encantadores de serpentes do dia dão lugar aos senhores das apostas da noite. Sendo que o álcool não é permitido na cultura mulçumana, as noites dos homens são preenchidas com pequenos jogos que envolvem dinheiro.
Os souks de Marraquexe
Os souks de Marraquexe
A praça Djemaa El Fna durante o dia
O minarete da mesquita Koutoubia, vista da praça Djemaa El Fna
Há algo a que damos muito valor na nossa vida - a aquisição de amuletos. Em todas as nossas viagens temos coisas que nos unem e que nos protegem sejam elas pulseiras, conchas bonitas, colares ou pedras. Estas coisas são para nós símbolos com grande significado e que surgem de formas especiais durante as nossas viagens. E mais uma vez chegou até nos um amuleto sem termos de o procurar. Na manhã do nosso segundo dia conhecemos um marroquino que não achávamos possível existir. Os marroquinos são conhecidos como bons negociantes e tudo é razão para pedir algum dinheiro - dar um indicação na rua ou ser fotografado. Desta vez o senhor não só não nos pediu nada em troca pela nossa curiosidade na sua técnica de esculpir madeira com mãos e pés em simultâneo, como esculpiu uma pequena peça de madeira e pôs um fio para o colocarmos ao pescoço. Deu-nos a peça de bom grado explicando o seu significado "life, atmosphere, nature" ("vida, atmosfera, natureza"). Recusou veementemente o dinheiro que lhe quisémos oferecer, e acabámos por comprar uma caixa mágica - uma caixa que para ser aberta tem de ser solucionado um pequeno quebra-cabeças - como forma de agradecimento.
O nosso amuleto a ser feito pelos pés e mãos do marroquino improvável
Para além das longas caminhadas pelos souks e de muita negociação muitas vezes sem chegarmos a comprar nada decidimos fazer alguns programas culturais também. Fomos ao Madraçal Ben Youssef, a antiga escola islâmica onde os alunos memorizavam o Alcorão, fundada no século XIV. A arquitectura e decoração exuberante faz deste local um dos exemplos mais belos de arte marroquina.
Fomos também à Maison de La Photographie, ao Palácio da Bahia e aos Jardins Majorelle.
O reflexo na água do pátio central do Madraçal Ben Youssef
Vista da Maison de La Photographie
Reflexo nos Jardins Majorelle, conhecidos como os jardins onde Yves Saint Laurent se inspirava
E assim se passam quatro dias em Marraquexe, a cidade vermelha, assim chamada pelas construções em pedra avermelhada. É uma cidade que nos enche os olhos com as suas cores vibrantes e em que os sons e os cheiros fervilham num caldeirão de emoções.